Um relato de experiência sobre tempo de vida e de elaboração da morte no contexto de cuidados em Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN)
Diante da confirmação de malformações, o receio de ter um filho com anomalias, vivido apenas na fantasia na maior parte das gestações (BORTOLETTI; SILVA; TIRADO, 2007), torna-se uma realidade, exigindo dos pais um intenso trabalho psíquico. Considerando o nascimento e a morte como eventos entrelaçados na vida de muitos bebês internados em UTIN e de suas famílias (JERUSALINSKY, 2002), o acompanhamento psicológico se estabelece como importante ferramenta não somente no fortalecimento de vínculos, mas também na elaboração de recursos e desconstrução de mecanismos empregados perante a gravidade de alguns casos. Este trabalho possui como objetivo discutir os atendimentos psicológicos realizados com uma mãe (A.) durante a internação de sua filha (E.), nascida com uma malformação com alta probabilidade de óbito. A metodologia se deu através do estudo de caso deste bebê, nascido a termo com uma encefalocele muito grave e inoperável, malformação caracterizada por uma protusão do crânio além de seus limites normais (BARRETO; BARBOSA; TELLES, 1993). O bebê permaneceu internado em UTIN durante seus três meses de vida até o óbito, sendo acompanhado pela equipe de psicologia através de atendimentos individuais com a mãe e com a díade mãe-bebê. A coleta de dados se estabeleceu a partir do prontuário clínico da criança e dos registros da psicologia.
A. recebeu a notícia sobre a malformação de sua filha ainda na gestação. Com o nascimento do bebê e sua surpreendente sobrevida, a inviabilidade de um procedimento cirúrgico, entretanto, foi confirmada. A. afirma então que “tudo desmoronou” (sic) em sua vida. Chiattone (2007) reforça que, em relação ao bebê malformado, a primeira dificuldade dos pais se encontra na discrepância entre a imagem idealizada e a imagem real do bebê. De fato, A. referia-se à filha que esperava: uma menina que brincava saudável no sonho que teve ao final da gravidez. Neste contexto, A. recorreu à defesa maníaca como mecanismo para lidar com a sua dor. Winnicott (1958) define a defesa maníaca a partir da capacidade de negação da ansiedade depressiva, relacionando-a com a incapacidade de aceitar o significado pleno da realidade interna e a coexistência de sentimentos, como amor, voracidade e ódio nela presentes. Considerando que na defesa maníaca o luto não pode ser sentido (WINNICOTT, 1958), os três meses de vida de E. foram vividos por A. como um tempo de elaboração e de intenso trabalho psíquico. Com o acompanhamento psicológico e a possibilidade de colocar em palavras sua própria história e seus sentimentos, A. iniciou o processo de articulação simbólica em torno da morte, permitindo o início do trabalho de luto do bebê, propiciado principalmente pelo reconhecimento de seu investimento em uma filha esperada diferente daquela que se encontrava na incubadora. O processo permitiu que a defesa maníaca se tornasse menos intensa e necessária, facilitando, dentro do possível, a vivência da morte de E. e a elaboração do luto. Conclui-se que a escuta especializada assume um papel importante onde um grande sofrimento se evidencia, como possibilidade de auxílio na descoberta de recursos internos, favorecendo, assim, novas significações.
ABRAN, J. A linguagem de Winnicott: dicionário das palavras e expressões utilizadas por Donald W. Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.
BARRETO, E.; BARBOSA, J.; TELLES, C. Classificação anatômica das encefaloceles anteriores. Arq. Neuro-Psiquiatr., São Paulo, v. 51, n. 1, p. 107-111, Mar. 1993.
BORTOLETTI F.F; SILVA, M.S.C.; TIRADO, M.C.B.A. Assistência psicológica em medicina fetal. In: BORTOLETTI F. F. et al. Psicologia na prática obstétrica: abordagem interdisciplinar. Barueri: Manole, 2007. p. 61-66.
CHIATTONE, H. Assistência psicológica de urgência. In: In: BORTOLETTI F. F. et al. Psicologia na prática obstétrica: abordagem interdisciplinar. Barueri: Manole, 2007. p. 52-60.
JERUSALINSKY, Julieta. Crônica de um bebê com a morte anunciada – intervindo com a instauração do sujeito na iminência da morte. In: ROHENKOHL, C.M.F.; BERNARDINO, L.M.F. O bebê e a modernidade: abordagens teórico-clínicas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. 169 – 178.
WINNICOTT, D.W. Natureza Humana (1988). Rio de janeiro: Imago, 1990.
WINNICOTT, D.W. Da pediatria à psicanálise (1958). Rio de Janeiro: Imago, 2000.
WINNICOTT, D.W. Os bebês e suas mães (1987). São Paulo: Martins Fontes, 2012.
1. Cuidados em Saúde nos Ciclos da Vida - 1.3 Morte e Processo de Luto
Maria de Fátima Junqueira-Marinho, Milena da Cunha Ribeiro