Violência sexual e abortamento legal: O que pode a Psicologia?
A violência sexual pode ser considerada dentro de um complexo contexto que envolve múltiplas causas como a discussão de gênero, políticas públicas e violação de direitos humanos. As consequências dessa violência perpassam diferentes aspectos, tanto individuais quanto coletivos. Para a vítima, destacam-se alterações de diversas ordens como financeira, segurança, social, saúde mental e física, sobressaindo-se o risco de contágio de infecções sexualmente transmissíveis, desenvolvimento de transtornos mentais, em especial o Transtorno de Estresse Pós Traumático, e gravidez. Esta última pode ser compreendida como um fator de intensificação dos prejuízos vivenciados após a violência sofrida, representando uma nova violação ao corpo, direito e desejos da mulher. Desde 1940, o Código Penal brasileiro garante o direito ao abortamento em casos de gravidez decorrente de violência sexual ou risco para a vida à gestante. Após decisão do Supremo Tribunal Federal em 2012, torna-se descriminalizada também a interrupção de gravidez em casos de anencefalia. O Ministério da Saúde traz normativas referentes ao tipo de atendimento que deve ser ofertado às gestantes que buscam abortamento em casos de violência sexual, ressaltando a importância da atuação multidisciplinar em caráter integral. Este modelo de atendimento deve ser oferecido obrigatoriamente por hospitais de todo território nacional. Diante do exposto, este simpósio visa discutir as possíveis atuações da Psicologia frente ao atendimento a vítimas de violência sexual, resultado do trabalho realizado em Hospital Público Estadual de referência para o atendimento a casos de Violência Sexual e Abortamento Legal. É possível dividir o atendimento psicológico hospitalar a esta demanda específica em três grandes grupos: avaliação, acompanhamento em enfermaria e oferta de psicoterapia. O atendimento em caráter de avaliação, em concordância com a legislação vigente e as normativas do Ministério da Saúde e Organização Mundial de Saúde, apresenta caráter multidisciplinar para acolhimento e aprovação do procedimento, contando com atuação das áreas de Serviço Social, Psicologia, Ginecologia e Enfermagem. É necessário auxiliar a paciente a compreender o processo a que está se submetendo, esclarecer dúvidas e fortalecê-la na busca por suas necessidades, além de proporcionar espaços de discussão interdisciplinar dos casos. O acompanhamento em enfermaria, por sua vez, visa auxiliar as pacientes no manejo de suas defesas, angústias e temores relacionados tanto ao procedimento a que serão submetidas quanto à violência sofrida e consequentes alterações em sua vida. Considera-se essencial a presença do profissional da Psicologia para acompanhamento e atravessamento de uma situação de crise, aqui definida como ruptura súbita da rede de sentidos que regiam sua vida cotidiana. Uma vez finalizados os procedimentos médicos impreteríveis referentes ao abortamento, o papel da Psicologia volta-se, então, para a recuperação emocional da paciente. No atendimento psicoterápico, busca-se ofertar cuidado, escuta qualificada e espaço para elaborar as experiências vividas, encontrando recursos internos e externos para lidar com a violência sofrida e as mudanças em sua vida. Para elucidação das três modalidades de atendimento descritas, será apresentado o caso clínico da paciente Ana (nome fictício), 37 anos, que deu entrada no ambulatório devido à violência sexual sofrida um mês antes.
Mayara Kuntz Martino
Abortamento: Definições legais e panorama mundial.
Abortamento pode ser entendido como a interrupção da gravidez, ocorrendo de forma espontânea ou provocada. Para a medicina, leva-se em conta tempo gestacional e peso fatal para que se possa considerar um abortamento e, portanto, não haja compatibilidade com a vida. O abortamento provocado será possível de acordo com a legislação vigente em cada país e o Brasil apresenta-se como um dos países com leis mais restritivas. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o procedimento pode ser feito de maneira segura ou insegura (sem os profissionais e/ou local qualificados para tal). De acordo com a OMS, também, aqueles países em que a lei permite de alguma forma o abortamento, é imprescindível que o estado o forneça de maneira segura. Entretanto, não é isso que se observa quanto ao âmbito nacional. Dados mostram poucos índices de abortamento seguro no Brasil, sendo uma das principais causas de morte materna em decorrência dos agravos quando realizado de forma insegura. Embora previsto em lei, há poucos serviços que oferecem esse atendimento às mulheres vítimas de violência sexual, desrespeitando a importância do atendimento integral, escuta qualificada, acolhimento do sofrimento e da demanda apresentada. Autores apontam, ainda, para a importância do entendimento global deste assunto complexo, levando em consideração as diferenças de gestação desejada para aquela indesejada e decorrente de violência sexual, momento extremamente diferenciado que pode trazer consequências psicológicas devastadoras à mulher e à futura criança, caso a gestação seja levada adiante.
Léia Anselmo Sobreira
Atendimento psicológico em situação de abortamento legal: modalidades de cuidado.
A avaliação psicológica de mulheres e adolescentes que buscam pelo aborto legal em situação de gestação decorrente de violência sexual, deverá considerar as peculiaridades desse tipo de demanda. É preciso ofertar escuta qualificada, acolher questões, auxiliar na compreensão de expectativas e vivências, facilitando o processo decisório da paciente. Tal prática exige criticidade e dinamismo para: compreender a condição psicológica atual da paciente, relacionando-a com seu contexto histórico pessoal e a vivência da violência sexual; oferecer o acolhimento e intervenções necessárias para recuperação da saúde; favorecer a construção de uma decisão consciente; amparar, orientar e intervir junto à familiares, quando necessário. Tal avaliação em equipe interdisciplinar é imprescindível para compreender a paciente de maneira global e ofertar cuidado integral. O atendimento psicológico em enfermaria, (antes, durante ou após o abortamento), contribui para a adaptação psicodinâmica da paciente frente à realidade, considerando sua organização defensiva e angústias atuais. Este atendimento em enfermaria também proporciona interlocução com a equipe, incrementando o manejo dos profissionais em relação às pacientes. O atendimento psicoterápico posterior possibilita a elaboração de questões relacionadas à violência sofrida, mostrando-se essencial para a promoção, recuperação e prevenção de agravos à saúde mental das pacientes atendidas.
Verônica Cristina de Souza Arrieta
O percurso no ambulatório de violência sexual: caso Ana.
Para ilustração do percurso descrito anteriormente, será apresentado o caso clínico da paciente Ana (nome fictício), 37 anos, que buscou atendimento no ambulatório devido a gestação decorrente de violência sexual perpetrada por agressor desconhecido em via pública no mês anterior. A paciente apresentava longo histórico psiquiátrico e múltiplos diagnósticos (Transtorno de Personalidade Borderline, Transtorno Bipolar, Transtorno Obsessivo-Compulsivo), sendo acompanhada pelo CAPS de sua região. No atendimento ginecológico de avaliação não foi possível determinar a idade gestacional, gerando um entrave técnico inicial para autorização do procedimento do ponto de vista médico. Na avaliação realizada pela Psicologia, então, foi necessário atender às seguintes demandas: 1) identificar se a paciente estava em condições emocionais de optar pela interrupção da gestação; 2) esclarecer, de modo adaptado às necessidades desta paciente em particular, as razões da impossibilidade de realizar o procedimento imediatamente; 3) detectar e indicar modalidades de cuidados psicológicos posteriores necessárias ao caso; 4) discussão em equipe multidisciplinar para determinação da conduta. O processo de avaliação teve como resultados a aprovação do procedimento e indicação de atendimento psicológico em enfermaria. Tal atendimento foi essencial para acompanhar a paciente na transição de uma situação de crise e reforçar o vínculo terapêutico na tentativa de garantir aderência aos cuidados posteriores. Identificou-se, portanto, necessidade de acompanhamento posterior, no modelo psicoterápico, o que exigiu contato com a rede de saúde da paciente (CAPS de referência) para definição da instituição que atenderia às necessidades do caso.
4. Modelos de Prevenção e Promoção da Saúde em Diferentes Contextos - 4.1 Intervenções em Rede em Contextos de Violência
Hospital Pérola Byington - São Paulo - Brasil
Mayara Kuntz Martino, Léia Anselmo Sobreira, Verônica Cristina de Souza Arrieta