Desamparo frente ao desconhecido: possíveis repercussões na relação mãe-filho diante da comunicação de notícias difíceis no contexto da Síndrome Congênita do Zika
A gravidez pode ser vista como um momento de mudanças não somente biológicas, como também psíquicas, envolvendo o que Stern (1997) afirma como constelação da maternidade e Bydlowski (2002) define com o conceito de transparência psíquica. Assim, o tempo cronológico da gestação se faz também como um tempo subjetivo de elaboração, importante para que a mulher possa construir um espaço para seu filho (ARAGÃO, 2004).
Considerando o potencial de emergência e impacto em saúde pública representado pela Síndrome Congênita do Zika e admitindo alterações na trajetória de expectativas da gestante neste contexto, a pesquisa teve como objetivo investigar as possíveis repercussões na relação mãe-filho diante de uma notícia difícil na gestação, a partir das lembranças e significados apresentados pelas mães de crianças acompanhadas no ambulatório de Zika do IFF/Fiocruz. O estudo partiu do pressuposto que a comunicação de notícias difíceis na gestação pode ter repercussões na relação mãe-filho. Como notícia difícil, entende-se aquela que afeta adversamente a visão de um indivíduo sobre si mesmo e sobre seu futuro (BAILE et al, 2000).
No que se refere à metodologia, a pesquisa fez uso da abordagem qualitativa e os conteúdos foram analisados buscando identificar as categorias de sentido subjetivo presentes nas narrativas obtidas através de entrevistas abertas, demarcando o processo de construção da informação tal como proposto por González Rey (REY, 2005). A coleta de dados ocorreu de junho a setembro de 2016. As participantes foram dez mães que durante o pré-natal tomaram conhecimento sobre algo relacionado à patologia do filho, escolha condicionada à triagem prévia dos prontuários e seguindo o critério de conveniência para o tamanho da amostra. A pesquisa encontra-se registrada no Comitê de Ética em Pesquisa do IFF/Fiocruz (CAAE 54419216.7.0000.5269).
Como resultado, emergiram cinco categorias: 1. “Foi um sonho”, relacionada ao planejamento da gestação e desejo de ter um filho; 2. “Meu mundo acabou”, envolvendo o momento em que malformações foram reconhecidas, as dificuldades dos profissionais no que concerne à técnica e aspectos emocionais da comunicação e a confusão psíquica percebida em algumas mães na assimilação de informações; 3. “Tudo de ruim passa na cabeça”, referente ao luto do bebê idealizado e sentimentos vivenciados; 4. “Eu preciso que alguém me fale como vai ser”, abordando o desamparo frente ao desconhecimento da doença e 5. “A gente tá vivendo dia após dia”, envolvendo o encontro entre mães e filhos e as estratégias estabelecidas no enfrentamento das transformações impostas.
A recepção da notícia e sua elaboração mostraram-se relacionadas ao modo como foi comunicada, reforçando a necessidade de discussões a esse respeito e a importância da preparação dos profissionais para essa difícil tarefa. O desconhecimento e as incertezas acerca da evolução da doença, suas consequências e prognóstico, lacunas no conhecimento também existentes para as equipes de saúde, somente reforçaram a delicadeza e a complexidade de toda a situação decorrente da epidemia. Evidenciou-se, assim, a necessidade de uma atenção integral à díade mãe-bebê, reconhecendo no acolhimento destas mães e no olhar sobre seus aspectos emocionais importantes ferramentas de cuidado em saúde.
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3. Intervenções Psicológicas na Rede de Atenção à Saúde - 3.4 Epidemias e Saúde Pública
Milena da Cunha Ribeiro, Imara Moreira Freire, Eliane Caldas do Nascimento Oliveira