“Prefiro ele com os anjos, bem, do que aqui comigo sofrendo”: luto antecipatório em uma Unidade de Terapia Intensiva Neonatal
As malformações congênitas impactam a relação inicial mãe-bebê, não apenas pela separação decorrente da internação do recém-nascido em Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (Utin), mas também pela grande distância entre o bebê idealizado e o bebê real, podendo representar uma ferida narcísica para a mulher. Quando as malformações apresentam letalidade precoce, se acrescenta a possibilidade de morte iminente. O pressuposto desta pesquisa foi que o diagnóstico de malformações que acarretam alta probabilidade de óbito no período neonatal repercute na relação mãe-bebê, podendo gerar um processo de luto antecipatório. A pesquisa teve como objetivo investigar a relação mãe-bebê em casos de bebês malformados com alta probabilidade de óbito no período neonatal. Em relação à metodologia, foi utilizada a abordagem qualitativa, com as seguintes técnicas de coleta de dados: a) entrevista narrativa; b) observação participante. O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), com número CAAE 53370016.9.0000.5269 e a coleta de dados ocorreu entre março e setembro de 2016. As participantes foram seis mães de recém-nascidos malformados com alta probabilidade de óbito no período neonatal. Os dados foram analisados segundo a análise de conteúdo, tendo resultado em três temáticas discutidas a seguir. 1) Notícias recebidas no pré-natal: possibilidades de compreensão e elaboração: Considerando que o bebê carrega representações de continuidade e perfeição (Tinoco, 2015), a notícia de uma malformação fetal pode ser de difícil elaboração em um primeiro momento. A maioria das entrevistadas precisou de um tempo que ultrapassou a gestação para compreender a gravidade das malformações. 2) O (não?) encontro com o bebê real: a malformação do bebê e sua gravidade: A compreensão das malformações só ocorreu após o nascimento, momento no qual as mães se depararam com um bebê muito diferente do idealizado. O bebê nunca corresponde plenamente às expectativas maternas (Kehl, 2009), mas, nos casos de malformações, esta distância entre ideal e real pode ser ainda maior. 3) Lidando com o real: suporte, negação e luto: Em relação ao luto antecipatório, cinco das seis entrevistadas se encontravam neste processo, apresentando reações descritas por autores (Bowlby, 1968-1980; Worden, 1982; Rando, 1988; Fonseca, 2012), como choque; entorpecimento; alternância da consciência de que a morte ocorrerá com negação; tristeza profunda e dificuldades de sono. Um luto antes da morte não necessariamente implica em desligamento prematuro (Rando, 1988). Apesar da possibilidade de perda iminente, o momento presente apareceu como um aspecto valorizado. O apoio da família, a religião e a confiança na equipe foram recursos importantes para as mães. Desta forma, considerando a importância das relações iniciais e as particularidades do contexto, este trabalho pode contribuir para que profissionais de saúde tenham subsídios para acolher estas famílias. A especificidade e a delicadeza envolvidas nos casos de bebês malformados requerem um preparo que formações acadêmicas tradicionais não contemplam. Assim, se fortalece a importância de formulação de políticas públicas que abarquem estes bebês e suas famílias – desde o pré-natal, incluindo nascimento, internação e acompanhamento até o óbito.
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Letícia Warwar Zaffari, Maria de Fátima Junqueira-Marinho, Maria Auxiliadora Monteiro Villar